Se quiser conversar com a poesia, chame-a para caminhar. Bebam algo, não deixem de se deter nas dores em que esbarrarem e não estabeleçam um destino de antemão.
Tropecem no profundo das formigas, evitem pisar nas baratas e assistam as pessoas passando vestidas em suas pressas.
Sempre que possível passem universos observando o desenrolar de um caracol.
Para caminhar os pés da poesia é preciso amputar os seus. É preciso derramar-se por dentro das pálpebras.
É preciso saber nadas nos mangues, entrelaçando as raízes, sem rasgá-las.
É preciso:
- ter medo de abrir, quando ela bater à sua porta;
- reconhecer toda a esperança nas palavras (ainda não ditas). Que jamais serão ditas.
O encontro com a poesia só se faz com peles expostas, poros rasgados. É preciso cavar a trama do corpo ainda vivo.
Aberta a pele, é preciso mastigar a carne. Dez, cem, mi vezes. Digerir cada nutriente e seus excrementos. Engolir e livrar-se deles, o quanto antes. mas não se esqueça: nada escapa às suas ancestralidades.
Já a tardinha, recolha os órgãos pendendo e costure de volta o silêncio retalhado. Guarde-o na gaveta à esquerda, a mais de baixo, da cômoda que foi de sua avó. Tranque e perca a chave para encontrá-la apenas quando houver saída.
Quando a noite te alcançar, convide a poesia a sentar no seu colo, cheire o cangote dos versos que te ampliam e percorras as estrofes mordiscando as entrelinhas.
A cada silêncio uma dança, um ritmo que só pulsa se se dispuser a apertá-lo rente ao peito, para ofegar juntes. Um pulmão apenas, a poesia e você.
Não conversa com a poesia quem não souber habitá-la. Transpassá-la. Quem não souber inventar a si próprie. Permeável.
De todas as pontes, estradas, veias, artérias, há uma única direção: o abismo.
Caminhe então, passos lentos. E apressados. Sentindo a terra arder o movimento entre um espaço e seu vão. Fugindo de si, para o mais dentro de fora do dentro.
lembre-se: é necessário, condição inegociável, a disposição para a morte. Mais que disposição: o desejo. Fabricar de si, o verso. Subverter a travessia.
Só ouve a poesia quem, da ausência, fecunda sentido. Sem gozo, a poesia escapa. Não cumpre o início de seu fim.
É preciso abandonar tudo que não se possa destrinchar um pouco mais. E perdoar, juntes, tudo de que carecem.
Se quiser conversar com essa poesia, é preciso silenciar-me. É preciso que nada seja tão preciso.
Hoje, recomeço.