Arrebatamentos. Alinhavos. Transbordares. Recomeços.

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Um site meu para mim mesma. Talvez. Algo com pouco sentido. E que sentido a vida tem? Algo sobre o que tenho sentido. Rascunhos e fragmentos de mim. Do mundo em mim. Rascunhos e fragmentos de como o mundo reverbera em mim. Literatura? Rascunhos e fragmentos. Poesia? Ou sobre como a poesia cava-tapa buracos em mim.

 

 

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vó não sabe

eu tava lá

ali

no quintal de vó

eu pegava as sementinhas

as soldadas da grande batalha

entre as sementes

e as folhas que caíram da goiabeira ainda cedo

mas vó chamou, imagina, para comer

logo na primeira trincheira

eu tinha ainda qeu lavar minhas mãos – ela disse.

essa menina só sabe pegar porcaria no chão.

porcaria não! são soldadas!

você tem razão, minha filha – ela dizia.

o quintal taí pra brincar.

mas agora vó tá cansada de chamar.

manhã de cedo ainda, acender fogão, catar, lavar.

cozinha arroz, prepara feijão.

e o suco do caju que deu para estar na época.

vem de vez almoçar.

aí que eu fui.

despedi de batalha aquela.

mas o que não contei pra vó

é que o arroz-feijão,

fizeram batalha outra,

cá dentro de mim,

de quem mais esquentava meu coração.

sobre elefantes

Se quiser conversar com a poesia, chame-a para caminhar. Bebam algo, não deixem de se deter nas dores em que esbarrarem e não estabeleçam um destino de antemão.

Tropecem no profundo das formigas, evitem pisar nas baratas e assistam as pessoas passando vestidas em suas pressas.

Sempre que possível passem universos observando o desenrolar de um caracol.

Para caminhar os pés da poesia é preciso amputar os seus. É preciso derramar-se por dentro das pálpebras.

É preciso saber nadas nos mangues, entrelaçando as raízes, sem rasgá-las.

É preciso:

  • ter medo de abrir, quando ela bater à sua porta;
  • reconhecer toda a esperança nas palavras (ainda não ditas). Que jamais serão ditas.

O encontro com a poesia só se faz com peles expostas, poros rasgados. É preciso cavar a trama do corpo ainda vivo.

Aberta a pele, é preciso mastigar a carne. Dez, cem, mi vezes. Digerir cada nutriente e seus excrementos. Engolir e livrar-se deles, o quanto antes. mas não se esqueça: nada escapa às suas ancestralidades.

Já a tardinha, recolha os órgãos pendendo e costure de volta o silêncio retalhado. Guarde-o na gaveta à esquerda, a mais de baixo, da cômoda que foi de sua avó. Tranque e perca a chave para encontrá-la apenas quando houver saída.

Quando a noite te alcançar, convide a poesia a sentar no seu colo, cheire o cangote dos versos que te ampliam e percorras as estrofes mordiscando as entrelinhas.

A cada silêncio uma dança, um ritmo que só pulsa se se dispuser a apertá-lo rente ao peito, para ofegar juntes. Um pulmão apenas, a poesia e você.

Não conversa com a poesia quem não souber habitá-la. Transpassá-la. Quem não souber inventar a si próprie. Permeável.

De todas as pontes, estradas, veias, artérias, há uma única direção: o abismo.

Caminhe então, passos lentos. E apressados. Sentindo a terra arder o movimento entre um espaço e seu vão. Fugindo de si, para o mais dentro de fora do dentro.

lembre-se: é necessário, condição inegociável, a disposição para a morte. Mais que disposição: o desejo. Fabricar de si, o verso. Subverter a travessia.

Só ouve a poesia quem, da ausência, fecunda sentido. Sem gozo, a poesia escapa. Não cumpre o início de seu fim.

É preciso abandonar tudo que não se possa destrinchar um pouco mais. E perdoar, juntes, tudo de que carecem.

Se quiser conversar com essa poesia, é preciso silenciar-me. É preciso que nada seja tão preciso.

Hoje, recomeço.

ler (o) corpo

Ler o corpo é escutar. Sentir, perceber.

É fechar os olhos, tocar, mesmo imóvel.

Respirar.

Ler o corpo é respeitar e ampliar limites.

Acolher, embalar.

É estar presente.

É estar junte de outros corpos, ou não.

É, sozinha, ser inteira.

É aprender no contato. Reverberar.

Ler o corpo é cuidar. Expandir.

É gritar, gritar bem alto, até o silêncio assentar.

É gesto.

É guardar o pensamento para daqui a pouco. E, talvez nem usar.

Ler o corpo é dançar. Brincar. Rodopio.

É misturar-se à terra. Ao ar. Mergulhar em todos e em cada líquido.

Mas, antes de afogar-se, respirar.

É conhecer cada textura, e procurar mais.

Ler o corpo é afeto.

Ler o corpo é saber todos os corpos sagrados como o nosso. Sem distinção.

Ler o corpo é salvar-se.

 

Irmana-dor

 

A dor esperava a gente naquela quina. Caminhávamos dentro dela sem saber. Sabíamos, é certo, de um dia. O hoje apavora. Ruídos, a gente caça espaço. Estrondo não. Somos pequenas para tanto grito. Tecidos novos, ainda, entrelaçados. Esse rasgo era difícil prever. Pequenas partes, descosturadas, bordavam trajetória. É bonito assim, tecido desgasta e mostra mais dentro. Mas rasgar assim é ponto sem nó. Dias de bordar, fios de lágrimas que seja, as imagens da despedida. Esse bordado, fios de histórias, moldura familiar. No filme que costuramos, as mãos dadas permanecem. Um dia seremos nós, nos despedindo.

Um dia, hoje será intocável.

Um dia vai fazer um ano que despedimos sem dar tchau, porque não sabíamos. Que perdemos aquele abraço, porque arrogantes. Um dia vai fazer um ano de saudade reinventada. Um ano em que esperávamos que amanhã seria o que não foi hoje. Mas, não, o que não foi hoje, foi ontem. Amanhã, ninguém sabe. E isso dói. Amanhã, daqui um ano, não sabemos. Mas ontem, ano atrás, pelo menos estávamos vives. Abraçavamos, ontem. Quando fizer um ano desse tanto, espero o impossível desse abraço que hoje não. Um dia, hoje será intocável.

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De verdade.

Tem um poema aqui, que eu fingi para mim, que era seu. Tem um poema meu, que eu fingi para mim, que não era seu. Tem um poema, ali no canto, rasgado, que eu fingi pra gente, que era eu. Tem um poema novo, rascunhado, que eu fingi pro mundo que ainda não nasceu. Tem palavras ali, uma após a outra, que eu fingi pro papel que eram poesia. Tem um papel ali, em branco, que eu fingi pra nós dois, que eu não vou queimar. Tem um fogo dentro, queimando, que vou fingir para mim, que não dói.

Ler tão fundo.

Para ouvir

Tem um texto escrito em mim e venho cavando buracos rasos demais para quem quer encontrar.

talvez eu saiba que ler o texto das minhas entranhas seja o passo final e não sei se posso parar agora.

talvez queira, mas se quisesse mesmo talvez cavasse mais fundo.

usasse as unhas, os dentes e não pinceis e óleos essenciais.

que tipo de gente cava buracos com assanas e não com alicate, martelo, britadeira?

não preciso dessa reforma diária, assídua e bagunçada para ler meu mais fundo. Só para continuar em pé.

para ler, preciso arrancar essas camadas de vida que não sou e que sustentam isso que tento ser para poder não cair.

para entrar no texto escrito em mim, preciso desistir de ser essa que sou para ser quem não sei.

ser quem não sei assusta e cada dia de gengibre limão morno e própolis pela manhã me põe mais dentro e fora dessa entrega.

cada abraço não dado desses tempos confinados me liberta e aproxima de mim.

ser tão coletiva também é um modo de não ler.

escrever sobre si talvez seja uma lupa que passa um ou dois poros adiante.

talvez seja também um jeito de enganar as entranhas e tentar carimbar por cima palavras de fora que não são. dentro.

quando chegar bisturi e abrir fígado, rins, pâncreas e baço não sei se suporto se não tiver carimbado por cima um pouco do escudo que construí para mim.

por isso, talvez, invento palavras e grito. quem sabe de tanto gritar elas descem e imprimem paredes. membranas todas revestidas dessa eu que escrevemos juntes. eu e cada você que topa ler em mim esse eu que não sou.

mas, quando de verdade as cicatrizes rasgarem e o texto dentro sair espero ser lida com carinho. generosidade talvez, porque não sei se as palavras de dentro agradam assim, sorriso aberto e braços sempre dados.

talvez as letras-células formem poesia outra dessa que não costuma agradar quem ouve. poesia que quando torce, sangra. como a cicatriz rasgada há de sangrar. pelo menos, quem sabe o texto tinge tudo de vermelho. é só não deixar entrar ar, porque quando respira…  ah.. quando respira, a gente já não tem mais coragem de ler tão fundo.

livremente inspirado na natureza morta de nós dois

Para ouvir

 

Quero comer suas cores. Me empanturrar das suas paletas secas, mofadas que só produzem os quadros tristes da sua opacidade.
Quero rasgar dente a dente seu godê amarelado, frágil, restos e manchas daquele tão pouco que você tinha para dizer.
Aquele pôster neo concreto contemporâneo vanguardista que não diz nada para ninguém e do qual você tanto se orgulha.
Quero chupar sua tinta, boca cheia, escorrendo, babando seus pigmentos.            Frequentar as feiras independentes, pops, indies, da esquerda-branca-classe-média-que-somos-nós-dois e que gasta salário mínimo para brincar de ser artista.
Quero me satisfazer no seu acrílico, nadar nesse óleo que produz likes e dor.                    Quero cada gota que você arrancou de mim, rasgada na sujeira da colagem, marcas toscas do mundo visto dos meus olhos junto ao seus.                                                          Quero a orelha decepada, artista triste, passos loucos. Quero não ouvir o grito tosco tão mimado do universo raso do teu peito descartável.
Quero botar fogo na galeria toda branca, toda limpa, toda grana.                                   Quero denunciar seu instagram, seus passos duros, seu personagem.                              Quero me imprimir nas sua paredes, achar canto nos seus traços, me enfurnar nas tuas cerdas, me maquiar das tuas telas, invadir teus materiais.                                               Quero naquele nesse no último e em cada instante ser nada, nada mesmo, nada além daquela a materializar sua obra prima autofágica, e morrer com você enterrada no seu fracasso de artista que não é.

P A L A V R A P E L E

Do poema que minha pela escreve pouco sei.

Sei que palavras me habitam. Que eu as habito.

Sei que quando rasga – e como rasga!- da minha carne brotam canções.

Que a textura dos poros não em deixa esconder o medo. O tesão. O sorriso.

Que a minha pela escreve com cheiro, gozo, e uma certa luz.

Sei que dentro dos meus escuros, minha pele cala.

Tenho descoberto que tudo que pulsa em mim, pulsa partes de mim.

Sempre soube dos meus transbordamentos.

Inundei de choro e orgasmo tudo que não coube em mim. E tanta coisa não me cabe.

Tão imenso esse mundo.

Tão imenso meu mundo.

Mas agora um novo sabimento de me alinhavar.

Tenho intuído meus transbordamentos internos.

Tenho descoberto meus órgãos escorrendo.

Se meu coração derrete, saí queimando pulmão. Fígado. Rins. Baço. Pâncreas.

Sou toda tomada por mim mesma.

Meus arrebatamentos desenham tanto de mim.

Venho descobrindo que para caber no mundo preciso de contornos interiores.

Precisos descobrir as palavras que constroem minhas entranhas.

Ler as palavras que me descrevem. Riscar as que me mutilam. Inventar as que podem me salvar.

Carimbar no mais dentro de mim as palavras que sou eu.