Por um fio

Por um fio

Asfalto. Nó na garganta. Falta de tudo. Vida sem forro. Novelo emaranhado. Terra abandonada, sem dono, sem uso. Dívidas de milhões, dinheiro que gente como a gente nunca vai ver. O fio colorido aos poucos desembaraça e começa a tecer.

Uma casa, e outra e mais outra. Pouco a pouco, borda casas para 9 mil famílias. Borda praças, igreja, jardins e pequenos comércios. Bordadeiras caprichosas colocam cortinas nas janelas, plantam hortas e jardim. Cuidar de plantas dá trabalho. Trabalho duro, diário. Coisas de meses, anos de cuidado. Pra florescer, crescer, dar frutos. Da terra, vira comida no prato. Encher o prato no supermercado não é coisa pra gente como a gente.

Histórias. Tecidos. Armários e estantes para guardar as memórias dos momentos mais bonitos. O brinquedo preferido da criança que hoje já é adolescente. O caderno. Poesia da professora. Desenho dos amigos. (menino, pega o casaco que vai chover!). Recordações de uma vida que se não é fácil, carrega a beleza e a força do fio que contra todos e contra tudo teceu seu espaço, achou um caminho e fez da falta, o arremate da conquista.

A vitrola tenta ainda embalar a música que fez tanta gente dançar. O som ameaça sair, ameaça ignorar a destruição, fingir que não viu. Ameaça trazer de volta a troca de olhares do possível casal, o sorriso do pequeno arriscando os primeiros passos. Ameaça a nostalgia das canções que enredam o peito de recordações. Mas o braço da vitrola se perdeu e a música, até ela, virou silêncio. Silêncio com ruído de escavadeira. Silêncio com som de casa caindo, som de gatilho apertado. Silêncio com som de fio desfazendo.

Durante a madrugada, pleno domingo, botões pequenos, grandes, coloridos. Um a um. Desabotoados. Material outro, que não é fio, mas chumbo, vai construindo balas,gás, espingarda. De chumbo e bala se constrói a destruição. E o novelo vai voltando a emaranhar. Ponto. Pondo fim às casas, jardins, praças e igreja. Cruz. Destece a cortina na janela, a geladeira que ainda não está paga (a prestação continua?).

Não fica aflito não. Tem razão de ser. Tem a propriedade privada. Tem o patrimônio. Não é uma casa. Um cachorro. Um fogão. Para valer a Constituição tem que ser terreno grande. Tem que ter renda. Tem que ter dívida maior do que valem todas as casas daqui juntas. Tem que ser dono de carro importado. Tem que ter funcionário. Ter amigo na justiça. Ou você acha que a Constituição ia gastar verbo para falar de um dormitório, cozinha, eletrodoméstico a prestação? Brinquedo que ganhou do filho do patrão. A Constituição é coisa séria. Não é pra gente como a gente.

Soterrados os sonhos, a luta, o caderno com o poema da professora e o bordado. Pó. Pequenos fragmentos. Fragmentos maiores. Destroços. Fiapos. Lona. Casa de parentes. Roupa usada. Colchão. Cobertor. A ponta do fio reaparece. Recomeço. Cor retrançando cinza.

Novelos azuis, laranjas, verdes, vermelhos e amarelos amarrando os canos dos fuzis, nas mãos de policiais capazes de atirar em pessoas em nome da lei. Amarradas as rodas dos tratores, desfeita a tinta da caneta que autoriza o pedido de reintegração. Lãs grossas amordaçam os donos de tudo. De escavadeira, inventa-se lançadeira. Novelos que entremeam novos laços. Pra gente como a gente. Pra toda gente.

 

Pano de fundo: Este texto é uma homenagem aos moradores e moradoras que durante oito anos bordaram o bairro do Pinheirinho em São José dos Campos e que tiveram seus sonhos rasgados em uma violenta reintegração de posse ocorrida em janeiro de 2012.

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